Eu
me lembro muito bem daquela sensação.
Colorir
a serragem, pensar nos desenhos.
Ver
o trabalho pronto, terminado, voltar pra casa tomar banho.
Depois
voltar pra missa de Corpus Christi.
Eu
via aqueles jovens, e os achava tão decididos, tão legais, eu queria ser como
eles, e fui durante um ano. O ano em que eu ainda acreditava.
Me lembro como se fosse ontem a sensação
horrível que tive quando vi a rodoviária dessa cidade. Uma mistura de
arrependimento, de desespero, queria voltar, mas sentia que não tinha volta. Eu
estava tão preocupada com o que ia me acontecer, que aquele entusiasmo do
momento da decisão foi por água abaixo, não existia mais.
Mas
ao mesmo tempo eu tava curiosa, eu queria pagar pra ver o que ia me acontecer.
Eu sabia que o que me esperava não era muito bom, e que eu ia sofrer. Mas eu me
dizia, me fazia recordar: menina você já passou por mudanças antes, no começo o
desconforto é terrível, mas depois você se acostuma.
O
bicho humano se acostuma com tudo, com qualquer lugar.
A
feiúra passa a não incomodar mais tanto, e a beleza fica tediosa, menos
importante do que quando você tá só de passagem.
Eu tinha meus doze anos quando li um livro que
ganhei na escola, ele contava a história de uma cidade onde as árvores
começaram a dar fruto dinheiro vivo, mas logo as pessoas descobriram que ao
cruzar a fronteira da cidade o dinheiro virava pó. E era assim que eu me sentia
quando cheguei na cidade, um saco de
poeira.
Que
logo se misturaria com a poeira suja da cidade.
Quando
deixei minha cidadezinha lá em cima eu não tinha conhecimento nenhum do que ia
encontrar, eu fui movida não por uma convicção, mas por um sentimento de que a
vida podia ser maior, de que existia mais coisas além do que eu conhecia, e eu
estava certa. Não de achar que eu seria mais feliz em outro lugar, mas certa de
que existia muita vida além daquela. E eu queria contar pra todo mundo, pra
minha família, pros meus amigos que a cidade grande não é como na televisão,
vai muito além dessa beleza.
Cidade
enganosa, tem um encanto que às vezes se diz benigno e outras vezes maligno. Se
você trabalha oito horas por dia num sub- emprego qualquer, a fadiga que dá
forma aos seus desejos toma dos desejos sua forma. E você pensa que está se
divertindo na cidade, quando não passa de seu escravo.
Há
muitos anos eu sou escrava da cidade grande, e eu não posso mais voltar atrás,
por que agora eu sou poeira, e de onde eu venho poeira não tem valor não,
porque lá poeira já tem é demais.
E
essa poeira poluída que agora sou, nunca mais vai se misturar com o pó da
estrada de terra batida sertão.
*Este texto contem livre adaptação de trecho do livro As cidades invisíveis de Ítalo Calvino.
(...)"Anastácia, cidade enganosa, tem um poder, que às vezes se diz maligno e outras vezes benigno: se você trabalha oito horas por dia como minerador de ágatas ônix crisóprasos, a fadiga que dá forma aos seus desejos toma dos desejos a sua forma, e você acha que está se divertindo em Anastácia quando não passa de seu escravo."
*O livro mencionado pela personagem é A árvore que dava dinheiro de Domingos Pellegrine.
*O livro mencionado pela personagem é A árvore que dava dinheiro de Domingos Pellegrine.
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